Testes de ADN são um fortíssimo obstáculo à imigração
Existem 21 países, 16 são europeus, que recorrem aos testes de ADN para descobrir se os laços biológicos entre os interessados em fazer o reagrupamento familiar existem mesmo.
Os testes acabam por permitir só o acolhimento dos casados e filhos biológicos, mas as famílias são muito mais do que isso, alertam os investigadores germânicos.
Torsten Heinemann e Thomas Lemke, dois investigadores da Goethe University Frankfurt, na Alemanha, estão a estudar o modo como diversos governos europeus usam os testes de ADN para travar a imigração. Por exemplo, na Alemanha, onde o reagrupamento familiar é desde há alguns anos uma importante forma de imigração, o Governo exige que os candidatos ao reagrupamento familiar se submetam a um teste genético de parentesco e fecha a porta a um filho que, apesar de constar como tal na certidão de nascimento, revele afinal não ter laços biológicos com o pai. É “a geniticização das famílias nas políticas de imigração”, acusam estes investigadores, que participaram num seminário promovido pelo Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto (Ipatimup), e deixaram o alerta: o direito ao reagrupamento familiar não se coaduna com uma noção de família reduzida aos laços biológicos, sobretudo se a noção de família que impera para os naturais de cada país é a da família “social, plural, alargada e recomposta”.
A possibilidade de estes perfis de ADN dos imigrantes serem utilizados para fins de investigação criminal é outro dos problemas apontados por esta dupla de investigadores, para quem tal prática coloca os imigrantes sob suspeição geral e dificulta o processo de integração no país de acolhimento. O recurso aos testes de ADN para reagrupamento familiar é já uma realidade em 21 países, dos quais 16 são europeus.
Por que é que alegam que o recurso aos testes de ADN nos pedidos de reagrupamento familiar dos imigrantes resulta numa “geniticização” da família?
THOMAS LEMKE (TL) – Desde logo porque uma das implicações disso é que a definição de família é reduzida à questão biológica, portanto todos os familiares que não sejam biologicamente relacionados e todos os membros da família alargada, como por exemplo, os avós, não são considerados no processo de reunificação familiar por via dos testes de ADN.
Mas já não era assim quando, na análise dos pedidos de reunificação familiar, eram considerados apenas os tradicionais documentos de identificação?
TL - Quando o processo se baseava nos documentos de identificação, não era considerada a ligação biológica.
TORSTEN HEINEMANN (TH) – Também aí a definição de família era restrita, mas sem necessidade de saber se os seus membros eram ou não biologicamente relacionados. Podia estar em causa um filho adotivo ou um enteado, desde que houvesse um certificado a atestar a sua condição mais ninguém questionava isso.
E não havia o risco de alguém descobrir por via do teste de ADN que o seu filho afinal não é seu filho biológico.
TH – Exato. Isso aconteceu na Alemanha. Com um imigrante que tinha dois filhos na Somália – tinham ficado à guarda de alguns familiares porque a mãe tinha morrido – e que, quando apresentou o pedido para que os seus filhos se lhe pudessem juntar teve de fazer um teste de ADN e descobriu que apenas um filho era seu, biologicamente falando. E apenas esse pôde reunir-se com ele na Alemanha.
É por isso que alegam que estes testes de ADN criam um duplo padrão entre imigrantes e os naturais de um dado país, no caso a Alemanha? Entre estes o que vigora, até em termos legais, é uma noção social de família que vai para além dos laços biológicos.
TL – A noção plural e social de família que faz parte da realidade legal e social da Alemanha, bem como de outros países de acolhimento onde se enfatizam os laços sociais face aos genéticos, contrasta com esta exigência de uma ligação biológica entre os membros da família que é exigida aos imigrantes. Isto é ainda mais grave se nos recordarmos que as tecnologias reprodutivas, como a fertilização in vitro, a doação de esperma ou óvulo, permitem uma separação entre a parentalidade social e o parentesco biológico. É um paradoxo: embora as tecnologias reprodutivas e genéticas fragilizem a ideia de que as relações familiares e a parentalidade são relações naturais fundadas na biologia, elas estão simultaneamente a ser utilizadas para reafirmar e estabelecer essa ideia. Mas apenas entre os imigrantes.
A impossibilidade de reunificação familiar a membros não biologicamente relacionados é comum aos diferentes países que usam essa tecnologia?
TH - Primeiro há que dizer que teoricamente a reunificação familiar é extensível a membros da família não biológicos. Se alguém tiver adotado uma criança e tudo estiver oficialmente certificado, a criança é autorizada a entrar no país. Mas, pelo menos no caso alemão, as autoridades simplesmente não aceitam os documentos e os advogados especializados nestes casos dizem-nos que, sendo assim, não há qualquer hipótese de fazer entrar essas crianças adotadas no país. Na Finlândia isso não é tanto assim. Porque entrevistam a família toda, incluindo as crianças adotadas, e vão verificar se há uma relação social e familiar entre eles. Por isso, para os imigrantes na Finlândia um resultado positivo nos testes de ADN pode ajudar e um resultado negativo não trava o processo automaticamente. Já na Alemanha um resultado negativo é sinónimo de não autorização de residência no país.
Não estão contra os testes de ADN por si só, mas contra o uso que é feito dos seus resultados?
TL – Sim, porque tudo depende da importância que é dada aos resultados.
TH - É uma moeda com dois lados. Para algumas pessoas o teste de ADN pode funcionar como uma oportunidade. Imagine um refugiado sem quaisquer documentos e sem hipótese de os obter e para o qual um teste de ADN pode ser a única forma de provar que tal pessoa é filho dele.
Os candidatos à reunificação familiar podem recusar-se a fazer o teste?
TH – Teoricamente, a submissão ao teste é voluntária. Na prática, o que acontece em caso de recusa é que o pedido de reunificação não é autorizado. Falámos com vários advogados chamados a intervir nestes processos e todos confirmam que os testes são cada vez mais frequentes porque as autoridades não confiam nos documentos que lhes são apresentados. Aliás, o Governo alemão publicou mesmo uma lista de mais de 40 países cujos documentos oficiais não são reconhecidos pelas autoridades alemãs, desde o Afeganistão a
Marrocos, passando pelo Azerbaijão, Haiti, Índia... Ora, um natural de um destes países pode ter razões de ordem religiosa, ética ou cultural muito válidas para recusar o teste. Porém, para as autoridades alemãs não há boas razões para alguém se recusar a fazer o teste.
O que acontece depois à informação genética destes imigrantes?
TH – As amostras têm que ser destruídas após os testes. Mas o perfil que é traçado a partir delas vai constar de um relatório que é enviado ao imigrante e às autoridades de imigração e o problema é que o Ministério Público pode, no âmbito de uma investigação criminal, pedir o perfil genético. Não há na regulamentação nada que obste a isso.
Por isso é que dizem que estes testes lançam a suspeição generalizada sobre os imigrantes?
TH – Sim.
TL – Mas isso aplica-se ao contexto alemão. Na Alemanha toda a legislação vai no sentido de promover a autodeterminação dos cidadãos, mas, na secção relacionada o uso de testes de ADN no contexto da imigração, suspende-se esse princípio da autodeterminação porque não há nada que impeça que essa informação genética seja usada para fins de investigação criminal, como não há nada que diga que os imigrantes têm uma palavra a dizer sobre o assunto e que podem exigir a destruição dessa informação.
Mas isso decorre de uma omissão na lei ou é intencional?
TH – É intencional na Alemanha. Na Finlândia também está na lei que o perfil de ADN pode ser usado para fins de investigação criminal. Na Áustria, não há regulamentação sobre isso, pelo menos até agora, mas eles tendem a usá-lo também. Consequentemente, enquanto no contexto em geral se assume que alguém é inocente até prova em contrário, no caso dos imigrantes a ideia de inocência surge reduzida no texto da própria lei.
De que modo isto influi na integração dos imigrantes?
TL – Pela forma como estão a ser usados, os testes de ADN são um fortíssimo obstáculo à integração dos imigrantes, desde logo porque exclui da vida do imigrante membros importantes da sua família, já que apenas estão autorizados a juntar-se no país de acolhimento aqueles que são casados e os filhos biológicos menores de idade. Os outros todos são excluídos. Há algumas exceções a esta regra, mas sem qualquer peso estatístico. Na perspetiva das autoridades políticas, esta tecnologia é um instrumento muito eficiente para reduzir a imigração.
TH - Neste momento há 21 países a fazê-lo, dos quais 16 são países europeus. Na Europa, há mais três países que estão a discutir a adoção desta tecnologia.
Que recomendações deixariam aos governos que adotaram esta tecnologia?
TL – A terem nos testes de ADN uma fonte adicional de informação, mas não uma fonte exclusiva e eliminadora das noções sociais de família. Depois, haveria que informar os candidatos à reunificação familiar sobre as consequências do teste, eventuais resultados inesperados e ainda sobre a questão de quem tem acesso aos dados e para que fins podem ser usados. Além disso, as pessoas deviam poder recusar-se a fazê-lo sem que isso os exclua automaticamente do processo. É absurda a presunção de que se alguém se recusa a fazer um teste de ADN é porque está a mentir.
Nestes casos, como poderiam as autoridades comprovar que há uma relação familiar?
TH – Entrevistando as pessoas implicadas, é possível investigar se há remessas de dinheiro, se há contactos frequentes, contas bancárias conjuntas, é possível deslocar um advogado especialista homologado pela embaixada ao local de origem do candidato e perguntar aos vizinhos se eles viviam juntos e há quanto tempo.
É mais caro?
TH – Sim, é mais caro e consome muito mais tempo. Por isso é válido ter o recurso aos testes de ADN como uma opção, mas sem que este seja o procedimento padrão.
Os testes são pagos por quem?
TH – É outro dos aspetos em que o procedimento pode ser melhorado. Na Alemanha, são os candidatos à reunificação familiar que têm que pagar o teste. Eles é que têm que provar que são familiares. Já na Finlândia é o Estado que paga, porque a ideia é que compete ao Estado investigar, nos casos em que os documentos fornecidos não são suficientemente credíveis, como é o Estado o interessado nessa informação adicional, então cabe-lhe suportar os custos disso. Na Áustria, o regime é diferente: as pessoas têm de pagar mas podem ser reembolsadas se o resultado for positivo; se for negativo, as pessoas perdem o direito ao reembolso. A Finlândia é um bom exemplo de como se pode usar o teste da maneira correta. Eles tentam usá-lo no melhor interesse do candidato, enquanto isso já não se verifica na Alemanha. Como recomendação prática, seria útil que os estados pagassem pelo teste se este tiver que ser feito, mas aqui o receio é que se é o Estado a pagar o teste então ele sentir-se-á legitimado para exigir que todos se submetam ao mesmo.