Testes ordenados pelos tribunais determinam a “verdade biológica”, mas não ensinam homens a ser pais. Maioria limita-se a “dar” o nome.
A maior parte dos pais que são obrigados pelos tribunais a perfilhar crianças — no âmbito das chamadas “averiguações oficiosas de paternidade” — não chega a estabelecer relações com os menores. A conclusão está contida no estudo Mães e pais depois da verdade biológica? Género, desigualdades e papéis parentais, sediado no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e coordenado por Helena Machado, do Departamento de Sociologia do Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho que, depois de um inquérito a 146 indivíduos sujeitos a testes de ADN para determinação da paternidade, conclui que a maioria se limita a “dar” o seu nome no registo de nascimento da criança, sem, contudo, chegar a estabelecer relações com ela.
Importava assim, segundo Helena Machado, que à ação de averiguação de paternidade se sucedesse uma ação de regulação do poder paternal, segundo os mesmos mecanismos automáticos. “As averiguações oficiosas de paternidade desencadeiam-se automaticamente sempre que não haja identificação do pai no registo de nascimento da criança. Depois de identificado o pai, o seu nome é inscrito no registo de nascimento da criança, só que o Estado fica-se por aí, ou seja, não prossegue com uma ação de regulação do poder paternal que, essa sim, obrigaria o pai a contribuir financeiramente e a envolver-se na vida da criança, ao mesmo tempo que garante o seu direito a manter contacto regular com ela.”
Quando foram inquiridos pela primeira vez, no momento em que se deslocaram ao laboratório para a recolha da amostra biológica, os pais “diziam praticamente todos que pretendiam contribuir financeiramente para o sustento da criança e manter contacto regular com ela, se o teste demonstrasse que eles eram os pais”. Porém, quando as autoras do estudo voltaram a inquirir os mesmos indivíduos, “quatro ou seis meses depois de apurados os resultados”, o discurso tinha mudado: “Muitos diziam algo do género: ‘Bem, estou desempregado, contribuirei se puder.’ Outros admitiam ter uma relação com a criança, mas à medida da sua disponibilidade, sem horas e dias de visita pré-determinados, e o mesmo em relação à contribuição financeira. Alguns iam ao ponto de questionar a idoneidade do laboratório, sugerindo que as amostras tinham sido trocadas.”
Não surpreenderá assim que, no decurso da investigação, muitos magistrados tenham sustentado que “não valia a pena intentar a ação de regulação do poder paternal, porque boa parte dos pais não tinha condições económicas para contribuir”, recorda a investigadora do ICS. Helena Machado contrapõe: “Só que as mães também não. E tinham de se arranjar, dispusessem ou não de ajuda de familiares.”
Só os mais pobres
O baixo nível de escolaridade, denominador comum à maioria dos 146 indivíduos inquiridos, não passou despercebido às autoras da investigação. “Eram maioritariamente pessoas de classe baixa e média baixa, com poucos rendimentos.” E as mulheres da classe média ou média alta que não identifiquem o pai da criança, aquando do seu registo, não estão sujeitas ao mesmo procedimento de averiguação da paternidade? “O que acontece, entre as classes mais altas e mais letradas, é que as mulheres não respondem ou não apontam possíveis pais perante o Ministério Público, e, por isso, a averiguação da paternidade não segue e o teste genético não chega a ser feito”, responde Helena Machado. Mas há outras explicações para este fenómeno. “Nos extratos sociais mais favorecidos, as relações tendem a ser mais paritárias, homens e mulheres têm direitos iguais, e admito que seja mais frequente o pai da criança assumir-se como tal e aceitar registá-la como sua.”
A forma como as mães são questionadas em tribunal é outro dos reparos contidos neste estudo. “Há perguntas que devassam a vida privada e a integridade moral das mães. Perguntar a uma mulher se era virgem quando engravidou, quantos namorados teve ou se costumava usar contraceção — sendo aqui a contraceção encarada como um sinal de promiscuidade sexual — é muito invasivo e não me parece que tenha fundamento razoável para o objetivo pretendido. Apesar disso, essa preocupação em traçar o perfil sexual e moral da mãe é uma prática judiciária que ainda se mantém”, comenta Helena Machado.
A investigadora defende assim que “devia ser feita alguma sensibilização junto dos magistrados”, não só para acautelar a privacidade das mães, mas também por causa da abordagem aos pretensos pais. “Muitos homens alegaram que os seus direitos foram desrespeitados, não só por não terem podido decidir em conjunto se teriam ou não a criança, mas porque os tribunais quase que os acusavam de não cumprirem as suas responsabilidades, mesmo antes de os testes terem determinado se eram ou não os pais da criança em causa”.
Para colmatar estas falhas, mas também para fomentar a comunicação entre os dois progenitores, o estudo conclui pela necessidade de ser criada uma fi gura de intermediação. “Um psicólogo ou alguém treinado em questões da família que pudesse ajudar a regular as interações entre eles, porque também é frequente haver mães que se sentem abandonadas e que acham que o pai perdeu o direito a ver o filho ou a filha.”
Acabar com “libertinagem”
O recurso aos testes de ADN como “instrumento moralizador” do comportamento sexual das mulheres é outra das falhas apontadas na investigação. “Para eles [os homens inquiridos] o teste genético era uma forma de apurar a fidelidade da mulher, de saber que ela não os tinha enganado, o que é curioso, porque, claro, o teste não prova fidelidade nenhuma. Mas esse discurso, de que a mulher entrou numa espécie de libertinagem a que a ciência vem pôr fim, também é muito consistente entre alguns magistrados”, critica Helena Machado. Dentro da mesma lógica, 90,5 por cento das mulheres assumiram que uma das principais motivações para o teste era “provar que não estavam a mentir”. “Havia muitas mulheres magoadas pela desconfiança dos pretensos pais e que queriam provar-lhes que não os tinham enganado.”
Os interesses da criança parecem assim atirados para um plano secundário e, na interpretação da investigadora do ICS, essa secundarização deriva também da condição socioeconómica dos inquiridos. “Pôr a criança primeiro inscreve-se muito na ideologia da classe média, em que se pensa no homem escolarizado, que assume o seu fi lho e quer o melhor para ele; não foi isso que eu encontrei na maioria dos casos que estudámos e em que detetámos ideologias de género muito mais tradicionais e menos paritárias.”
A definição de quem deve esclarecer estes pais sobre a metodologia e as implicações dos testes de ADN é algo que também precisa de clarificação urgente. “Os laboratórios assumem que esse trabalho foi feito pelos tribunais e quando as pessoas lá chegam metem-lhes um papel à frente para elas assinarem e recolhem as amostras. Os tribunais parecem achar que são os laboratórios a responder a eventuais dúvidas. Isto levanta a questão do consentimento informado e o resultado é que muitas mulheres chegam lá aterrorizadas, porque ouviram histórias incríveis e acham que vão tirar sangue ao bebé. Não nos podemos esquecer que estes são procedimentos que despertam muitas confusões e emoções”, conclui.
Diferenças de género: Elas apontam relações estáveis, eles menos
As mães envolvidas neste estudo declararam mais frequentemente existir uma relação de namoro ou de união de facto com os pretensos pais no momento da conceção da criança, enquanto entre os homens preponderaram os que reportaram um relacionamento menos estável ou mesmo ocasional. Mesmo nos 60 casos em que a mãe e o pretenso pai foram entrevistados em simultâneo não chegaram a metade (47%) os que coincidiram na perceção do relacionamento mantido entre ambos.
“Eram elas a dizer que a relação era de união de facto ou de namoro e eles, sobre a mesma relação, a alegar que se tratava de algo esporádico e transitório”, especifica Helena Machado, para quem estas versões contraditórias “têm muito a ver com noções de masculinidade e feminilidade”. Traduzindo: “É a mulher a procurar enquadrar-se na norma, que determina que ela só terá relações sexuais no âmbito de uma relação estável.”
Quanto às razões que justificavam a realização dos testes, 98,5% dos pretensos pais começaram por eleger a necessidade de cumprirem as suas obrigações financeiras para com a criança como principal razão (contra 74% por das mães), num argumento que suplantou mesmo a necessidade de terem a certeza de que eram os pais da criança (97,15%).
A amostra de 146 indivíduos (77 mulheres e 69 homens) foi extraída do universo de cerca de 500 mulheres e homens que todos os anos fazem testes genéticos para averiguação de paternidade ordenados pelos tribunais nos principais laboratórios do Norte: a Unidade de Prestação de Serviços de Identificação Genética do Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto e o Instituto Nacional de Medicina Legal do Porto. Financiada pela Fundação para a Ciência e Tecnologia, a investigação incluiu entrevistas que decorreram entre Junho de 2009 e Maio de 2010, num dos laboratórios, e entre Janeiro e Abril de 2011, no outro. A idade dos pais variava entre os 17 e os 71 anos. As mães tinham entre 16 e 53 anos. Solteiros ou divorciados na sua maioria (só 15,9% dos homens e 3,9% das mulheres estavam casados). Mais de metade das mães estavam desempregadas (52%, contra os 27% de pretensos pais na mesma situação) e a maioria vivia com familiares próximos (49,4%) ou sozinha com os filhos (32,5%).
Três perguntas a Guilherme de Oliveira: “Não se pode controlar tudo”, nem os pais
Professor da Faculdade de Direito de Coimbra e especialista em Direito da Família, Guilherme de Oliveira defende que a prática de averiguação da paternidade “tem dado bons resultados”.
Faz sentido esta prática de averiguação oficiosa de paternidade pelos tribunais, sempre que uma criança é registada sem o nome do pai?
Acho que sim, desde que há dezenas de anos o nosso sistema aceitou que os pais são os biológicos e que estes devem assumir as suas responsabilidades, acho bem que o Estado desencadeie esse processo. Desde 1967 que isso está na nossa lei e todos os anos esse procedimento dá origem a que apareçam centenas de pais que, de outra maneira, não teriam aparecido, pelo menos não na altura acerta. Portanto, não só acho bem, como acho que isso tem dado bons resultados.
Mesmo se a omissão do nome do pai decorre da vontade da mãe?
Há países que dizem que as mães podem dar autorização para isso, mas suponho que isso não é algo de que a mãe possa dispor. O homem correu o risco, tornou-se pai e tem que assumir as responsabilidades e o filho tem direito a ter o pai que tem. As pessoas não podem querer escolher tudo. Nem eu simpatizo com a ideia romântica de que um marinheiro possa deixar uma grávida em cada porto. Cada pai tem o dever jurídico de assumir a sua responsabilidade.
Mas há a questão de o Estado “lavar as mãos” depois disso, sem garantir que os pais assumam a sua responsabilidade após terem sido obrigados a perfilhar a criança.
O tribunal determina a verdade biológica, acho bem essa “intromissão”, porque leva a pessoa a assumir a sua responsabilidade e ela fica com obrigações, como o pagamento de pensão de alimentos. Pode-se dizer que não se pode controlar tudo, nem se anda em cima dos pais para eles serem bons pais. Mas a verdade é que não há país nenhum que consiga isso; quando as coisas correm mal, o que se pode é tentar proteger a criança e criar educação parental e, por outro lado, a mãe tem sempre oportunidade de apresentar esse problema e procurar limitar as responsabilidades parentais ou retirá-las.
Kits vendem-se nas parafarmácias e online: Vazio legal aumenta riscos de violação dos direitos e garantias fundamentais
Para além dos testes genéticos para apuramento de paternidade ordenados pelos tribunais, são cada vez mais as pessoas que, a título privado e porque confrontadas com um cenário de dúvida, recorrem aos testes de ADN para confirmarem a paternidade ou a filiação biológica. Dos cerca de 5500 testes que em média se realizam todos os anos nos serviços de genética forense do Instituto Nacional de Medicina Legal (INML) — a instituição de referência nacional na área — cerca de 10% são pedidos por privados (eram 2% há quatro anos).
Por cada pessoa cuja ADN se analisa, o INML cobra cerca de 500 euros, pelo que o teste nunca custará menos de mil euros, já que, em geral, é realizado a pelo menos dois indivíduos para se poder confirmar ou excluir a relação genética de parentesco. O problema é que há cada vez mais laboratórios a explorar este nicho de mercado. A preços mais baixos, com venda de kits pela Internet ou nas parafarmácias e convidando a atropelos aos direitos e garantias individuais, nomeadamente por não cuidarem de garantir o consentimento da pessoa cujo ADN é analisado. “Com a venda livre de testes, qualquer pessoa pode chegar a um sítio público onde alguém bebeu uma chávena de café e pegar numa chiclete de um miúdo e saber se este é filho daquela pessoa e depois usar a informação como entender”, exemplificou uma fonte do INML.
Acresce que, beneficiando do atual vazio legal, nem todos os laboratórios garantem a fiabilidade necessária. Assim, todos os especialistas da área convergem na certeza: é urgente estabelecer normas éticas e jurídicas. Em França, as más práticas levaram a que a realização de testes de filiação fora de processo judicial passasse a ser criminalizada. Na Alemanha, desde o ano passado que nenhum teste genético para investigação da filiação pode ser feito sem o consentimento escrito da pessoa envolvida (ou dos pais, se se tratar de um menor).
Estes dois exemplos surgem apontados no parecer que a Comissão de Bioética da Sociedade Portuguesa de Genética Humana elaborou, em Outubro de 2010, e no qual se admite que, à luz do direito português, se pode aceitar a realização de testes sem ter que intentar uma ação de impugnação de paternidade. O mesmo documento ressalva, porém, que a realização de um teste de paternidade deve ser acompanhada de orientação de médicos e psicólogos. E recomenda ainda que, no caso de menores, nenhum teste possa ser feito sem o consentimento de ambos os progenitores. Em caso de recusa, poderá haver lugar a um processo de suprimento de consentimento em que caberia ao juiz decidir em função dos interesses da criança.
A comissão admite que outros laboratórios realizem este exames desde que devidamente autorizados e creditados. Em relação aos testes de venda direta ao consumidor, a comissão é lapidar ao defender que não deverão poder ser usados para averiguar a paternidade de menores.